Esse texto explica porque nossos amigos felinos são assim, independentes, desapegados, calmos... e mal compreendidos pelos humanos. Mas mostra ao mesmo tempo que quando amam, amam de verdade. A Larissa vai adorar este texto de Artur da Távola:
"Bichos
polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso. Nada é
mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O
só amar a quem os merece. O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de
súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades
doentias do amor. Só as saudáveis. Lembrei,
então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu.
Quem sabe,
talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem sabe,
entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade
de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está
por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?
Já viu
gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra
que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a
valsa no circo. O leal
cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a
vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. Gato não.
Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem,
mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado,
espertalhão ou falso. "Falso", porque não aceita a nossa falsidade
com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade.O gato não
gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo
amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.
O gato
devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio, é espelho. O
gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação.
Nada pede a quem não o quer. Exigente com quem ama, mas só depois de muito
certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.Sim, o gato não
pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente, é capaz de amar muito.
Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra.
Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.
Quem não
se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece,
então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o
(próprio) mistério. O gato não
se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso.
Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou substitui
inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se
defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós
queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso , quando surge nele um ato de
entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro,
que não pode ser desdenhado. É um gesto
de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.
O homem
não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou
latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que
enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há
pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Nada
diz, não reclama. Afasta-se.
Quem não o
sabe "ler" pensa que ele não está ali. Presente ou ausente, ele
ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está
comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.
O gato vê
mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas
amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma
chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção,
silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba
perceber. Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos
devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua
busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado.
O gato
sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do
real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade
de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.
O gato é
uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e
profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os
gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer
afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências.
Ninguém em
toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!
Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de
respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no
Cosmos. Ensina a
espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos em todos os músculos,
preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o
aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15
minutos) se aquecendo para entrar em campo.
O gato sai
do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o
desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e
preserva como a um templo.
Lição de
saúde sexual e sensualidade.
Lição de
envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias.
Lição de
organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal.
Lição de
anatomia, equilíbrio, desempenho muscular.
Lição de
salto.
Lição de
silêncio.
Lição de
descanso.
Lição de
introversão.
Lição de
contato com o mistério, com o escuro, com a sombra.
Lição de
religiosidade sem ícones.
Lição de
alimentação e requinte.
Lição de
bom gosto e senso de oportunidade.
Lição de
vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem
veemências, sem exigências.
O gato é
uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do
homem".
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