(a melhor capa ever para a melhor tradução de título ever de Agatha Christie)
Cai o
pano
Agatha
Christie
- Porque você tem de ter uma
mente tão complicada, Poirot? Você sempre gosta de fazer tudo da maneira mais
difícil. Você sempre tem de fazer as coisas mais difíceis!
- E que agora se transformou numa mania? É
isso que você diria? Talvez. Mas fique tranquilo, minhas indicações o levarão à
Verdade. E talvez, então, você desejará que elas não o tivessem levado tão
longe. E então você dirá: Fechem as cortinas. Que caia o pano.
Falar de
Cai o Pano para mim é falar do passado, falar de coisas que perdi e não voltam
mais, mas também falar de um tempo que passou, e que bom que passou! Que nunca
mais volte.
Li Cai o
Pano pela primeira vez aos quinze anos. Eu passava por um momento um pouco
esquisito em minha vida. Eu fiquei doente e até hoje não sei porque, não sei o
que tive e não sei como melhorei, mas posso dizer sem sombra de dúvida que a
literatura me ajudou muito a me recuperar. Eu era quase uma criança, era então
dezembro de 2004, e uma coisa muito ruim estava para acontecer. Quando paro
para pensar em tudo que vivi naquele ano, me assusto, pois é inevitável não
imaginar que o que sentia não era um reflexo inconsciente do medo daquela coisa
ruim que estava para acontecer – e que aconteceu – e que eu nem fazia ideia de
que estava acontecendo. Eu realmente me assusto. Mas não quero falar disso.
Eu
sentia uma mistura de depressão e síndrome do pânico. Eu não conseguia me
sentir bem. Eu tinha medo de absolutamente tudo. De ir pra escola, de ficar em
casa, tinha medo do meu quarto, da sala, da cozinha, tinha medo de ir dormir, e
dormindo, medo de acordar. Não conseguia dormir com a porta do quarto fechada.
E tinha um medo imenso do fim de tarde. Era o momento do dia mais horrível para
mim. Eu era, como disse, quase uma criança, uma adolescente. Eu tinha tempo.
Não precisava trabalhar. E, por um lado, isso era horrível. A mente desocupada
é um seleiro para pensamentos ruins, e eu me afundava num pessimismo e num
desespero constantes. Meu pai havia perdido o emprego, e não preciso dizer como
isso nos afetou, e ainda acho que a pessoa mais afetada fui eu. Sempre levei a
vida a sério demais, e isso às vezes é prejudicial. Preocupava-me dia e noite
com a situação da mina família, tudo para mim era motivo de desespero, qualquer
coisa que acontecia eu colocava o dinheiro – e a falta dele – em primeiro
lugar. Sentia-me uma inútil porque não trabalhava, porque faltavam coisas para
minha família, e eu não fazia nada. E isso me destruiu. Eu queria, de uma vez
por todas, que as cortinas se fechassem na minha vida.
- Porque – ela disse com uma
energia súbita e feroz – é a Verdade. Pelo menos e Verdade em relação a mim. Sou
uma mutilada.
Por outro
lado, essa é a época da vida em que nunca mais volta. Ou melhor, volta. Na velhice.
É quando você tem o bem mais precioso que o ser humano pode ter, depois do
Conhecimento. Você tem Tempo. Quão maravilhoso
é o Tempo quando você sabe utilizá-lo. Eu não sabia. Não sabia como aquele
Tempo me faria falta. Sonhava que me tornaria uma acadêmica, seria rica e teria
um futuro brilhante. É claro que nada disso aconteceu. Nossa vida se resume a
uma corrida dos ratos interminável, onde a roda gira e nós corremos feito
loucos atrás de que? De dinheiro, para comprar para as pessoas que amamos o
carinho que não temos Tempo para dar? O computador, o carro, o celular da moda?
A roupa de marca? Corremos atrás de nada. corremos atrás de uma vida vazia. É lógico
que precisamos de dinheiro. Infelizmente precisamos de dinheiro. O mundo em que
vivemos é assim. E atrás desse dinheiro trabalhamos oito horas por dia,
gastamos mais umas duas entre ir e vir do trabalho, com grandes variações
dependendo de onde você mora, mais algumas no supermercado, no banco, enfim,
mas aquelas quatro, cinco para dormir, mais algumas nos alimentando – quando nos
alimentamos – com a higiene pessoal, cozinhando, arrumando nossas coisas, nossa
casa, e o que sobra de tudo isso? O dia de 24 horas evapora-se diante de nossa
vida. A vida passa e o que fizemos? Quando nos divertimos? Quando curtimos
nossa família? E nossos filhos? E nós mesmos? Quando pegamos um livro, vimos um
filme interessante? Quando? Quando? Não, o trabalho não dignifica o homem. Não me
venham falar no nosso trabalho para a sociedade, da nossa função como cidadão. A
sociedade suga nossa vida e nós? Nós ficamos
sem nada. Na sociedade onde vivemos, o trabalho escraviza o homem. O trabalho
humilha o homem. Nossa necessidade de trabalhar – que, sim, é real – acabou se
tornando uma obsessão.
- Essa é a parte, digamos,
deprimente de lugares como esse. Hoteizinhos administrados por pessoas gentis
mas arruinadas. Ficam cheios de gente fracassada, derrotadas, pessoas que nunca
forma nada, que nunca será nada, que... que foram derrotadas e alquebradas pela
vida, de gente velha, cansada e acabada.
Sua voz foi morrendo. Uma tristeza
enorme e abrangente tomou conta de mim. Como aquilo era VERDADE! Aqui estávamos
nós, um bando de gente em decadência. Cabeças cinzas, corações cinzas, sonhos
cinzas. Eu, triste e solitário, a mulher ao meu lado amarga e desiludida. O dr.
Franklin, suas ambições cortadas e impedidas, sua esposa com uma saúde péssima.
Norton pulando atrás de passarinhos. E Poirot, aquele Poirot brilhante de
outrora, um caco.
Eu,
então, achando que a vida seria maravilhosa quando o trabalho me dignficasse, idiota como sempre fui, e
sou até hoje, só um pouco menos, perdia meu Tempo. Tempo que não volta nunca
mais. Tempo para sorrir, para estudar, ler, aprender, fazer algo pela minha
mãe. Eu achava que só podia fazer algo se tivesse dinheiro. Que grande imbecil
que eu era! 15 anos, e uma cabeça cinza. Tempo de plantar, de olhar, de amar. Eu
perdi meu tempo, como todo mundo perde. As pessoas na dão valor ao tempo. Mas,
ainda assim, eu lia, porque a literatura era meu refúgio, meu mundinho. Claro,
joguei meu tempo fora lendo babaquices, como O tempo e o vento, mas serviu
para e não repetir o erro. Naquela época eu ainda era escrava de uma Verdade
que não existia, que só muito depois me libertei. Mas também não vou falar
disso. Foi nessa época antes de começar a ler Harry Potter – e ele fez muito por
mim – que eu comecei a ler Agatha Christie, como já falei outro dia. E aquela
senhora que morrera 13 anos antes de eu nascer me ajudou a ser um pouco melhor.
Era dezembro, e eu comecei a ler Cai o Pano.
- O que é mal? O que é bem? Essas concepções
mudam de época em época. Você testaria apenas uma percepção de culpa ou de inocência.
Na realidade o teste não tem valor algum.
- Não vejo como chega a tais
conclusões.
- Meu caro amigo, vamos supor
que um homem crê ter o direito divino de matar um ditador ou um agiota, um
dedo-duro ou qualquer outro que lhe cause indignação moral. Ele comete o que você chamaria de ato culposo, mas ele considera absolutamente justo.
Confesso
que, no estado de ânimo que me encontrava, talvez Cai o Pano não fosse a
literatura mais indicada. Mas acabou sendo. O livro é quase um relato psicológico
da Escolha. O que é certo é o que é errado O que é certo é o que é fácil. Dos livros
de Agatha que já li, certamente é o mais profundo. A parte policial é nublada
por essas discussões, mas não perde seu brilhantismo jamais. Talvez todos esses
dilemas se justifiquem diante da missão de Agatha ao escrever esse livro. O que
vou dizer não é spoiler porque já é consagrado, eu mesma li o livro sabendo o
que aconteceria: este é o último caso de Hercule Poirot. O detetive morre, e
talvez, por esse plot tão triste, o livro seja tão melancólico. Agatha insistia
e dizer que achava Poirot um personagem chato, e que não gostava dele. Mas escreveu
34 romances protagonizados pelo belga, além das peças de teatro e dos mais de
30 contos. Conta outra, titia.... então, o cenário da morte de Poirot foi o
mesmo do primeiro romance de Agatha – e primeiro de Poirot – e o primeiro lar
do refugiado belaga da 1ª guerra mundial na Inglaterra. Styles. A antes
gloriosa mansão agora tornara-se um decadente hotel, e Poirot se hospedara lá
atrás de um assassino. Ou melhor, atrás do assassino. O assassino perfeito,
como o próprio belga define. Um assassino que tem o método perfeito, e que por
causa desse método, jamais pode ser pego. O livro é diferente de todos os outros
romances de Agatha por um simples motivo: Poirot já sabe quem é o assassino,
mas precisa impedi-lo de continuar cometendo os seus crimes. Como fará isso, se
o assassino não pode ser pego? Poirot conta com a ajuda de Hastings para essa
missão, já que está doente, paralítico, realmente a beira da morte. Nesse cenário,
onde um Poirot quase derrotado tenta alcançar o inalcançável, Agatha passeia,
com muito talento, pelos dramas humanos dos demais ocupantes da pensão. Há um
momento em que Hastings participa de uma discussão sobre eutanásia, e fica
evidente a intenção de Agatha em discutir sobre o certo e o errado, um conceito
que pode variar tanto conforme a época, o povo, os interesses sociais. A discussão,
ora explicita ora implícita, durante o livro todo alcança o ápice quando
Poirot, antes de morrer, toma uma atitude que sepulta a discussão. O bem do ser humano vem em primeiro lugar.
- Cher ami! – foi o que
Poirot disse para mim quando saí do seu quarto. Foram as últimas palavras que o
ouvi dizer. Porque quando Curtiss foi atender o chamado do seu patrão,
encontrou-o morto...
Muitos lerão
este texto e julgá-lo-ão mal escrito e confuso. Sim, eu concordo. Eu ainda
estou colocando minha vida nos eixos. Estou tentando fazer o certo, porque já
errei demais para alguém tão jovem. Hoje sou alguém muito melhor. Mas ainda
preciso melhorar. A vida não é justa. Estou cansada daquele papo otimista, que
parecer reproduzir-se em velocidade ultra rápida em final de ano, onde todos
desejam paz, amor, fingem gostar-se mutuamente, enchem a cara na noite de ano
novo e na segunda feira tudo continua igual. Mudanças de verdade não precisam
de data especial, hora marcada. Elas simplesmente acontecem. E precisamos ter
coragem. Não, eu não quero que caia o pano. Eu ainda quero fazer muito por quem
eu amo e por mim.
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