Esse é um excelente texto que o Sérgio, assertivo como sempre, garimpou no excelente site Administradores. Para nos fazer refletir sobre o que é riqueza, o que é pobreza, e, acima de tudo, o que é bom senso.
Por mais modernos que queiramos parecer, nós brasileiros somos um
povo conservador. Temos uma alma aristocrática que não exige corpo
aristocrático para se incorporar. Da faxineira à socialite, do gari ao
magnata, não é difícil encontrar quem sonhe ter (ou tenha) um (ou mais
de um) empregado em tempo integral a seu dispor, para servir e cumprir
as tarefas desagradáveis. Ter bens somente para ter e dizer que tem é
normal. Ficar com o nome sujo no mercado para bancar uma vida que não
pode pagar - mas impressiona no Instagram - também.
De tão cristalizada que essa visão está em nossa cultura, é difícil
isso não soar como algo normal. Mas eu acredito, sinceramente, que
seríamos uma sociedade melhor se executivos lavassem seus próprios
banheiros e porteiros não precisassem olhar os moradores do condomínio
de luxo de baixo para cima.
Lendo coisas pela internet, encontrei um texto escrito por um brasileiro que mora na Holanda e publicado em seu blog, em janeiro de 2013, há cerca de um ano. Ele fala sobre isso e achei interessante compartilhar aqui com vocês.
Da relação direta entre ter de limpar seu banheiro você mesmo e poder abrir sem medo um Mac Book no ônibus
Por Daniel Duclos
(Texto publicado sob a licença Creative-Commons/Não Comercial/ Atribuição/ Não derivativa 3.0)
(Texto publicado sob a licença Creative-Commons/Não Comercial/ Atribuição/ Não derivativa 3.0)
A sociedade holandesa tem dois
pilares muito claros: liberdade de expressão e igualdade. Claro, quando a
teoria entra em prática, vários problemas acontecem, e há censura, e há
desigualdade, em alguma medida, mas esses ideais servem como norte na
bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se
acha inferior a um gerente. Um instalador de cortinas tem tanto valor
quanto um professor doutor. Todos trabalham, levam suas vidas, e uma
profissão é tão digna quanto outra. Fora do expediente, nada impede de
sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem suas Heinekens juntos. Ninguém
olha pra baixo e ninguém olha por cima. A profissão não define o valor
da pessoa – trabalho honesto e duro é trabalho honesto e duro, seja
cavando fossas na rua, seja digitando numa planilha em um escritório com
ar condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos. Claro
que profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A
questão é “você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não
te torna melhor que ninguém”.
Profissões especializadas pagam
mais, mas não muito mais. Igualdade social significa menor distância
social: todos se encontram no meio. Não há muito baixo, mas também não
há muito alto. Um lixeiro não ganha muito menos do que um analista de
sistemas. O salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um bom salário de
profissão especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar mais do
que alguém não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma ordens
de você só porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal
vistas. Chegar dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um
time, do qual você faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu
trabalho dentro do time seja de tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente
inversos aos conceitos da sociedade brasileira, fundada na profunda
desigualdade. Entre brasileiros que aqui vêm para trabalhar e morar é
comum – há exceções - estranharem serem olhados no nível dos olhos por
todos – chefe não te olha de cima, o garçom não te olha de baixo. Quando
dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão menos
especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta
hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o
chefe não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão
especializada no Brasil conseguem tranquilamente contratar ao menos uma
faxineira diarista, quando não uma empregada full time. Os salários
pagos à mesma profissão aqui não são suficientes pra esse luxo, e é
preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo que pague (bem mais do que
pagaria no Brasil) a um ajudante, ele não ficará o dia todo a te seguir
limpando cada poerinha sua, servindo cafézinho. Eles vêm, dão uma
ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto
você. De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai:
todos se encontram no meio, e pra quem estava no Brasil na parte de
cima, encontrar-se no meio quer dizer descer de um pedestal que julgavam
direito inquestionável (seja porque “estudaram mais” ou “meu pai
trabalhou duro e saiu do nada” ou qualquer outra justificativa pra
desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa
tem um outro efeito que é muito atraente pra quem vem da sociedade
profundamente desigual do Brasil: a relativa segurança. É inquestionável
que a sociedade holandesa é menos violenta do que a brasileira. Claro
que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há roubos. Estou
fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros
que queixam-se amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam
incansavelmente a possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas,
sem enxergar a relação entre as duas coisas. Violência social não é
fruto de pobreza. Violência social é fruto de desigualdade social. A
sociedade holandesa é relativamente pacífica não porque é rica, não
porque é “primeiro mundo”, não porque os holandeses tenham alguma
superioridade moral, cultural ou genética sobre os brasileiros, mas
porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há uma relação direta
entre a classe média holandesa limpar seu próprio banheiro e poder abrir
um Mac Book de 1400 euros no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os
dois efeitos. Primeiro porque acredito firmemente que a profissão de
alguém não tem qualquer relação com o valor pessoal. O fato de ter
“estudado mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma equipe não te torna
pessoalmente melhor que ninguém, sinto muito. Não enxergo a
superioridade moral de um trabalho honesto sobre outro, não importa qual
seja. Por trabalho honesto não quero dizer “dentro da lei” - não
considero honesto matar, roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade
alheia, espalhar ódio e mentira, não me importa se seja legalizado ou
não. O quanto você estudou pode te dar direito a um salário maior – mas
não te torna superior a quem não tenha estudado (por opção, ou por falta
dela). Quem seu pai é ou foi não quer dizer nada sobre quem você é. E
nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser cuzão. Um doutor que é
arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer garçom que trata
direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão não tem relação
com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de
limpar banheiro. Ninguém gosta – nem as faxineiras no Brasil,
obviamente. Também não gosto de ir ao médico fazer exames. Mas é parte
da vida, e um preço que pago pela saúde. Limpar o banheiro é um preço a
pagar pela saúde social. E um preço que acho bastante barato, na
verdade.
PS. Ultimamente vem surgindo na
sociedade holandesa um certo tipo particular de desigualdade, e esse
crescimento de desigualdade tem sido acompanhado, previsivelmente, de um
aumento respectivo e equivalente de violência social. A questão dos
imigrantes islâmicos e seus descendentes é complexa, e ainda estou
estudando sobre o assunto.
UPDATE: Muita gente tem lido este
post como uma idealização da Holanda como um lugar paradisíaco. Nada
mais longe da verdade. A Holanda não é nenhum paraíso e tem diversos
problemas, muitos dos quais eu sinto na pele diariamente. O que pretendo
fazer aqui é dizer duas coisas: a origem da violência no Brasil é a
desigualdade social e 2, apesar da violência que gera, muita gente gosta
dessa desigualdade e fica infeliz quando ela diminui, porque dela se
beneficia e não enxerga a ligação desigualdade-violência. Por fim: esse
post não é sobre a Holanda. A Holanda estar aqui é casual. Esse post é
sobre o Brasil, minha pátria mãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário