Submarino

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Clarice sem Cabeça

Após a explosão, o planeta tornou-se caos. Não havia mais cidades, somente um grande deserto, formado por crateras de bombas e restos do que fora um dia a civilização humana. Os sobreviventes fugiam, escondiam-se, lutavam entre si pela sobrevivência. Como alimento, restaram alguns animais, deformados pelos efeitos da guerra, da impureza do ar e da água, mas estes animais tornaram-se muito mais violentos, lutando também por sua sobrevivência.
Certos grupos de humanos tornaram-se canibais, caçando outros humanos, outros sobreviventes, tomando suas posses e devorando-lhes a carne. A luta era constante, a esperança morreu na guerra. Só restou a loucura. Esses canibais perderam o sentimento e o interesse por seus semelhantes, e, aos poucos, perderam também a razão. Os gases tóxicos, a radiação, o clima hostil, as doenças, tudo isso contribuiu para a deterioração do cérebro destes seres, que se tornaram animais perigosos. Vagavam sem rumo, na maioria das vezes feridos, sem alma, as carnes caindo de seus corpos. Tornaram-se zumbis.
Entre os poucos sobreviventes que mantinham a razão, e que haviam se unido em pequenos grupos para combater os zumbis, destacaram-se líderes que começaram a orientar os demais. Eram ex-militares, caçadores, pessoas disciplinadas e que sabiam como se defender e sobreviver neste ambiente hostil. Treinaram os homens e mulheres, ensinando-os a atirar, se defender, caçar, lutar e encontrar comida no deserto hostil da Terra. Dentre os aprendizes, destacou-se um jovem, que gostava muito de ler, e sabia tudo a respeito de sistemas de comunicação, matemática e física. Fã de Asimov, Clark, Rowling, Sagan, Tolkien e Hawking, sua mente era uma vasta biblioteca. Se a guerra não tivesse acontecido e as bombas não tivessem destruído a civilização, ele seria um nerd. Mas nos dias atuais, ele era um achado, e escolheu pra si o apelido de Hunter. Parecia arrogância, mas não era.
Certo dia, Hunter saiu para encontrar comida. Caminhou a tarde toda, e havia encontrado pouca coisa num velho depósito subterrâneo. Cansado, demorou-se muito na volta para a base. A noite caiu, e alguns homens resolveram ir ao encontro do nerd, preocupados com sua demora.
Hunter caminhava oculto na sombra, sob um viaduto destruído, tentando atingir uma saída que acessava uma antiga avenida. Estava atento, mas preocupado. Havia um canto cego, uma pequena “esquina” pela qual teria que passar, e onde não teria uma visão completa da saída, devido aos entulhos do desabamento do viaduto, que caiu formando uma muralha. Mas este era o único caminho. Caminhava silenciosamente, dedo no gatilho, sentidos alertas. O canto escuro se aproximava, e Hunter acionou a lanterna embutida em seu fuzil. Mais um passo, e mais outro. Pronto, o canto escuro foi contornado, e a fraca luz da lua entre as nuvens negras já podia ser vista. Foi quando Hunter a viu. Era magra, alta, cabelos pelo ombro. A fraca claridade não deixava ver as feições da jovem, e ele precisava saber se ela era apenas uma sobrevivente apavorada, ou um zumbi faminto. Hunter percebeu que ela carregava algo, abraçado contra o peito, e iluminou-a, descobrindo que o objeto era um livro. Quando a luz da lanterna permitiu ver o título estampado na capa, Hunter não teve dúvida: abriu fogo, explodindo a cabeça da jovem e dando-lhe uma morte instantânea. Os amigos que saíram à sua procura e já estavam próximos, correram em seu auxílio guiando-se pelo barulho do tiro, mas o problema já estava resolvido, e Hunter, um pouco assustado, sussurrou:
- Não sei se era um zumbi, mas o livro é a prova de que ela não tinha mais cérebro...
O corpo sem vida estava no chão, ainda abraçado ao livro em cuja capa se lia: “Clarice na Cabeceira".

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