Submarino

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Maldição



Era ela. Sempre ela a me perseguir.

De todos os tamanhos, estava em todos os lugares: na sala de aula, nos livros, na lousa, nos cadernos... na minha vida. Quem foi que inventou essa coisa horrorosa e inútil?

Deixe-me explicar: tem uma hora em que você é obrigado a se encontrar com ela. Você pode fugir, fingir que não é com você, inventar uma história, passar mal, ir parar na psicopedagoga... mas vai ter um momento em que você vai dar de cara com ela, entendeu? 

E aí, não tem jeito: sua mão vai doer, sua cabeça vai esquentar, a borracha vai gastar até o fim, não vai ter lápis que dure nem apontador que aguente. É a maldição que chegou para ficar na sua vida.

Mas... ela é linda. Não pense que isso não existe, tem maldição linda, sim. Cheia de curvas, espaços claros, parece um desenho de fada! Você nem acredita quando lhe mostram pela primeira vez. Se eu desenho bem, fazer isso vai ser bico, você imagina, cheio de autoconfiança! Doce ilusão! Porque maldição que se preza é assim: parece uma benção, depois lhe pega e não larga nunca mais!

Se você está acostumado a desenhar muitas curvas, não ache que será mais fácil lidar com ela! As suas curvas são totalmente diferentes! Elas tem hora para começar e para terminar, as linhas são o limite, e, aí, quem é que da conta de fazer tantas curvas num espaço tão pequeno? É claro que elas quase sempre saem tremidas!

Por falar nas tais linhas, que pesadelo! Cada uma dessas criaturas de caber direitinho no meio delas! Para quem ensina, parece muito simples: como assim, menino, então não é mais fácil escrever no meio de um espaço todo certinho do que numa folhona sem começo nem meio nem fim? Dizia a vovó Kita, toda sabida, pois já tinha alfabetizado um tanto de crianças nos bancos da fazenda onde foi criada.

Para minha vó não tinha cabimento não gostar de fazer “letra de mão”: ela nasce com a gente, é só deixar o lápis correr solto, olhando a linha, que nos dá a medida da chegada, dizia ela. Algo absolutamente incompreensível para mim, pobre garoto do primeiro ano.

Não bastasse a gente ter de ir para a escola de uniforme, ter hora certa pra brincar – a tal “hora do recreio”, porque, pra mim, recreio tinha que ser toda hora, afinal, que graça tem ser criança se a gente tem de ter hora certa pra brincar? – e ter dever de casa pra fazer, no primeiro ano ainda tínhamos de nos virar com essa... Maldição!!!Não é justo, insistia eu, olhando nos olhos da minha professora.

Ah, a minha professora. Como eu gostava dela! Doce, paciente, linda como uma barra de chocolate! Seus cabelos enroladinhos, antes tão fascinantes para mim, agora me lembravam as tais curvas das infelizes “letras de mão”!

EU ODEIO LETRA CURSIVA!!!

Pronto! Falei o nome dela! Fim! Letra de mão, LETRA CURSIVA, letra infernal! Letra para o resto da vida, dizia a minha mãe, que jurava que ninguém no mundo iria me deixar escrever com letra bastão! Eu adorava a minha mãe, mas quando ela me disse isso, tive tanta raiva que me escondi embaixo da mesa da sala de jantar. Se aquela seria a letra que me faria ser “lido e compreendido para o resto da vida”, eu queria virar um código secreto! “Dava para ser indecifrável?”, eu quis saber.

Alias, o que eu não entendia de verdade é porque a gente já não aprendia a escrever direto no computador! Lá tem todas as letras, todos os tipos e tamanhos! Pra que ficar lutando com essa maldita letra cursiva? PRA QUE?????

Mas na escola era assim e ponto. Então...

Um dia sentei para fazer a lição de casa em letra cursiva com a maior calma. E boa vontade para acertar, caprichar, fazer as pazes com a maldição.

Minha mãe, com toda paciência que havia guardado no bolso do coração, preparou uma surpresa para mim: um quadro em que as tais letras cursivas eram figuras (animais, objetos). Segundo ela, aquelas ilustrações iam ajudar para que eu escrevesse as tais de um jeito mais fácil. “É gostoso!”, ela fez questão de salientar.

Vejam só o quadro que minha mãe desenhou para mim:


Comecei tentando escrever aquele “f” com lembrança de faca bem no meio das linhas. Tentei uma, o “f” entortou para a direita, tentei duas e a “barriga” debaixo dele ficou igual à de cima, o que mais lembrava um oito do que uma faca, e, por fim, tentei três, para chegar à conclusão de que aquele “f” jamais escreveria faca, no máximo daria conta de ser o buraco da agulha por onde a linha deveria passar!

Experimentei de novo, começando pelos buracos, já que tinha, a princípio, me dado bem com eles. Tentei o “b”, que era de “bolo”. Bolo bom, imaginei, já comendo com os olhos um delicioso bolo de cenoura com calda de chocolate. Pus-me a desenhar aquela curva que daria num buraco tal qual o da agulha, mas fui malsucedido no buraco menor, que deveria ser a “pequena barriga” do “b”. Não deu certo, a curva não se fazia, apenas enrolava, sem jeito. A menos que houvesse uma barriga completamente murcha e torta no “b”, aquilo seria o correto, mas eu desconfiava de que para o “b” esse tipo de barriga era inviável.

Simplesmente a mão não me obedecia! Tentei o “c”, que parecia mais simples, mas aquele caracol era rápido demais pra mim, não devia ser desse planeta, eu pensava. Aliás, o que eu gostei mesmo foi de desenhar as anteninhas da cabeça dele, que, percebi depois, não tinham nada a ver com a letra “c”! O mesmo ocorreu com o “s” que, tal como o sapo, pulava para cima e para baixo sem nunca conseguir ficar no meio daquelas mal traçadas linhas!

Pra não dizer que sou um cara que desiste fácil, tentei fazer todas as letras, fui até o “z”. para descobrir que tinha dado zebra mesmo. Que realmente a maldição da letra cursiva tinha vindo para ficar. Que eu não ia me livrar dela tendo apenas um quadro meio bobo como modelo...

Dia seguinte, levei o tal quadro para minha professora, ver, junto com todas as minhas tentativas malsucedidas. ela riu e me abraçou, explicando que eu, na verdade, estava indo muito bem, o quadro da minha mãe é que realmente não ajudava! A intenção foi boa, meu querido, mas não dá para associar esses bichos às letras! Até porque você viu quando fez o caracol como é mais fácil desenhar a figura do que escrever as letras né? Uma coisa não tem nada a ver com a outra! Que tal você ficar com os movimentos que a sua mão deve fazer para escrever cada letra? Acho que isso, sim, pode ajuda-lo a lidar com essa maldição!

Como sempre, minha professora tinha a palavra certa na hora certa. Fiquei mais calmo, o que não quis dizer que a maldição estava dominada. Na verdade, tive certeza, naquele momento, de que essas infames letras cursivas são donas da gente: não somos nós que as fazemos, elas é que nos fazem.

E assim seria ao longo de toda minha vida. Às vezes, escrevia torto, outras, na linha, misturaria a letra cursiva com a letra em bastão para me fazer entender. Mas jamais teria uma caligrafia bonita. A maldição da letra cursiva é eterna. Pelo menos para mim. Até porque se não fosse assim, não seria maldição, né?



Texto “A maldição da letra cursiva”, publicado na revista “Carta Fundamental” do mês de setembro de 2013. Escrito pela Jornalista Januária Cristina Alvesibi, inspirada por seu filho de 6 anos, que também acha que a letra cursiva é uma “maldição”! É uma história infantil, mas serve para todos nós. Não acho que a pessoa precisa ter a linda letra cursiva para ter uma letra linda. Pelo contrário, você, em primeiro lugar, tem que ter uma letra legível, a capacidade de se fazer entender. Talvez as escolas se concentrem tanto em ensinar a letra cursiva - o que é importante, sim - mas acabam superestimando-a demais......

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