Juan Jose Millas, 66 anos, escritor e jornalista. Já
ouviu falar dele? Pois é, este espanhol de Valência publicou no Jornal El Pais
um texto criticando duramente o sistema capitalista, e este texto tornou-se o
mais lido do jornal. Divulgado e debatido em redes sociais, o texto fala – a princípio
– da crise espanhola, mas serve para todo o mundo. O capitalismo e o consumismo
oprimem o ser humano, que não percebe, e a economia explora e destrói nossas
vidas. Somos manipulados, e ainda vivemos num sistema feudal. Leia, e veja a verdade:
“Um Canhão pelo Cú
(texto de Juan Jose Millas publicado em agosto de 2012 no Jornal El
Pais)
Se percebermos bem – e não é fácil, porque somos um
bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre
o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colônia, do capitalista
manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo
da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo
de criança num bordel asiático.
Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer
com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de
sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação,
uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e
este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que
durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se
afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se
descer.
Se o preço baixar demasiado, talvez não te compense
semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou beber para o resto da tua
vida e podes até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região
geográfica em que estejas – e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia
financeira.
Para exemplificar, estamos a falar da colheita de
um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país
inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que
com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à
meia-noite. Um país que, da perspectiva do terrorista financeiro, não é mais do
que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil anda de um
lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.
A primeira operação do terrorista financeiro sobre
a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja,
retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa,
pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a
divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição.
Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista econômico que
acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país – este, por acaso -, e diz
“compro” ou “vendo” com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou
vende propriedades imobiliárias a fingir.
Quando o terrorista financeiro compra ou vende,
converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que
antes de irem trabalhar deixaram na creche pública – onde estas ainda existem –
os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos
pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a
que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para
cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto você lê
estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num movimento racional, justo
ou legítimo, mas num movimento especulativo promovido por Merkel com a
cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.
Tu e eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem
creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os nossos
sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já fomos
coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades
humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes. Somos simples
mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola
pública, tornamo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o
terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus
ou da pátria.
A ti e a mim, estão a pôr nos vagões do trem uma
bomba diária chamada prêmio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em
nome da economia financeira. Avançamos com rupturas diárias, massacres diários,
e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas
ações terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas
vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos
mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas.
A economia financeira, se começamos a perceber,
significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os
documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma.
Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A atividade principal da
economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido
quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os
valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.
Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os
dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais, enviando as autoridades para
cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as autoridades empenham-se a fundo
para proteger esse filho da puta que te vendeu, recorrendo a um esquema
legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual
tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da tua vida.
Vendeu fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da
economia financeira, já que estão ao seu serviço.
Na economia real, para que uma alface nasça, há que
semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver.
Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90
dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que
terás de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços
comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há
que tirá-la do buraco.
A economia financeira não se contenta com a mais-valia
do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso
brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça
da mesma forma que um terrorista doentio, passo à redundância, brinca enfiando
o cano da sua pistola no rabo do sequestrado. Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a
cumplicidade dos nossos difusores das ideias neoliberais.”
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