Submarino

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Compras de Natal

                    A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiverma no céu.
                    As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade doa no inteiro; enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência.
                    Tudo isso para celebrar um meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém.
Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem reais, pois na loucura do regozijo unânime nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos que isso.
Grandes e epequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente suscetíveis. Tambem eles conhecem todas as lojas e seus preços - e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça a nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcedente. Não devemos tambem oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça desses presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. Ninguem oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão, para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que - especialmente no verão - teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma.
                    Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão.
Numa grande caixa de plástico transparente ( que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete en forma de flor (que nem se possa guardar como flor, nem usar como sabonete) e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas.Todos ficamos extremamente felizes.
São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes, os estojos, os papéis de embrulho comdesenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável - apenas o meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.

Cecília Meireles.

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